Tradicionalmente a escolha pelo tipo de intervenção para diferentes quadros clínicos depende da experiência profissional e da predileção do terapeuta. Esse cenário tem se modificado no contexto da Prática Baseada em Evidências.
Em 1952 o psicólogo alemão Hans Eysenck publicou uma revisão de 19 estudos empíricos de psicoterapia de sua época, nos quais a única medida de resultado disponível era o registro do terapeuta em termos de cura ou muita melhora, melhora, pouca melhora e nenhuma melhora. Nessa investigação concluiu que nenhuma modalidade de intervenção psicoterápica era mais efetiva para a melhora do cliente do que a mera passagem do tempo.
É fácil identificar o que aconteceu com Eysenck, ele foi alvo de inúmeras críticas da comunidade terapêutica da época. Essas críticas impulsionaram as investigações em psicoterapia tentando provar sua eficácia que foi o principal efeito do trabalho de Eysenck.
Revisões de pesquisas clínicas realizadas nas décadas de 1950, 1960 e 1970 surgiram na segunda metade da década de 70 e, em sua maioria, demonstravam que a psicoterapia é altamente efetiva e que não existem diferenças significativas entre as várias modalidades. Com base nos resultados de Luborsky et al. (1975) e de Smith et al. (1980) a eficácia das psicoterapias foi atribuída a características que estão presentes nas mais diversas intervenções terapêuticas. Fatores comuns: qualidades do terapeuta (e.g. empatia e aceitação), características do cliente (e.g. expectativa de melhorar com a terapia) e relação terapêutica.
De acordo com os defensores dos fatores comuns as especificidades de cada tratamento seriam relativamente pouco importantes para o resultado final do processo terapêutico. Nesse sentido, Luborsky et al. (1975) chegam a afirmar que “de agora em diante nós deveríamos parar de dar atenção à forma do tratamento ao indicar pacientes para a psicoterapia” (pg. 1005).
Muitos pesquisadores argumentavam que os principais responsáveis pela mudança terapêutica seriam os fatores específicos dos procedimentos, técnicas e estratégias presentes em cada modalidade de terapia. Paradigma dos fatores específicos: há um comportamento alvo, queixa ou transtorno a ser tratado (e.g., fobia de barata); há uma explicação teórica sobre a origem do problema (e.g., condicionamento respondente); há mecanismos de mudança consistentes com determinada abordagem teórica (e.g., extinção respondente); esses mecanismos de mudança indicam uma terapêutica a ser empregada (e.g., dessensibilização sistemática); os resultados (e.g., cura da fobia) são atribuídos à terapêutica empregada, ou seja, a um fator específico da intervenção.
A Divisão 12 da Associação Americana de Psicologia (APA) Instaurou, em 1993 uma força tarefa composta por psicólogos de diferentes abordagens teóricas, cujos objetivos eram definir e identificar tratamentos empiricamente sustentados. Os objetivos principais eram comprovar o papel dos fatores específicos, propor diretrizes de formação para futuros terapeutas, treinamento contínuo para os profissionais em exercício, disseminar os tratamentos empiricamente sustentados para os planos de saúde e informar a população sobre a eficácia da psicoterapia.
A sustentação empírica dos tratamentos foi avaliada de acordo com problemas clínicos específicos tais como transtorno do pânico, transtorno obsessivo compulsivo, fobias, depressão, estresse, disfunções sexuais, entre outros.
Um tratamento era considerado empiricamente sustentado se houvesse – (1) dois ou mais ensaios clínicos randomizados conduzidos por diferentes pesquisadores que demonstrassem que aquele tratamento era superior a placebo ou a outras intervenções psicoterápicas ou que eram equivalentes a um tratamento já estabelecido em estudos estatisticamente significantes – (2) nove ou mais experimentos de caso único conduzidos por diferentes pesquisadores que demonstrassem que aquele tratamento era superior a placebo ou a outros tratamentos já estabelecidos. O tratamento era considerado provavelmente eficaz quando havia: (1) dois estudos que demonstrassem que aquele tratamento era superior a um grupo sem tratamento ou; (2) três ou mais experimentos de caso único que demonstrassem que aquele tratamento era superior a placebo ou a outros tratamentos.
Em 1999 a Divisão 12 formou um comitê permanente que publica atualizações constantes sobre a eficácia de intervenções psicológicas, disponíveis em seu website (https:://div 12 org/ psychological treatments
Apesar dessas conquistas, o produto da força tarefa da Divisão 12 foi contestado por diversos pesquisadores e terapeutas, por várias razões. Pesquisas cujos participantes preenchiam os critérios diagnósticos para alguma psicopatologia descrita no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM; American Psychiatric Association, 2013), alguns autores argumentam que os diagnósticos não capturam as particularidades que os clientes levam para o consultório e nem os contextos em que os problemas surgiram e se mantêm. Outros defendem que os diagnósticos não são necessários para descrever os clientes e que rotular um grupo de indivíduos apenas por compartilharem algumas características não os torna semelhantes, cada cliente deveria ser visto como único e, portanto, receber um tratamento totalmente individualizado e boa parte dos clientes costuma apresentar sintomas de ansiedade, depressão, uso de drogas, alterações de personalidade, que estão abaixo do limiar para fechar um diagnóstico completo e que muitos outros buscam a terapia para resolver questões que sequer estão descritas no DSM.
De acordo com Addis, Wade e Hatgis (1999), a reação negativa à manualização deve-se a um conjunto de preocupações por parte de clínicos e pesquisadores: atrapalharia o desenvolvimento de uma boa relação terapêutica, ignoraria as diferenças individuais; não atenderia às necessidades de clientes com múltiplos problemas e/ou diagnósticos, ameaçaria a independência, espontaneidade e criatividade do clínico e retardaria o desenvolvimento de novas teorias e de intervenções alternativas.
Em 1999, uma força tarefa foi formada pela Divisão 29 da APA (Psicoterapia) com o objetivo de identificar, operacionalizar e disseminar informações sobre relações terapêuticas empiricamente sustentadas. O produto final desse trabalho foi publicado no livro Psychotherapy Relationships That Work: Therapist Contributions and Responsiveness to Patient Needs (Norcross, 2002). Retomada das discussões entre defensores dos Fatores comuns vs. Fatores específicos.
Em meio ao embate entre os defensores dos fatores comuns e os defensores dos fatores específicos, uma força tarefa foi constituída em 2002 pela Society for Psychotherapy Research em conjunto com a Divisão 12 da APA, cuja premissa era a de que todos os fatores envolvidos no processo psicoterápico deveriam ser levados em consideração: qualidades do terapeuta; características do cliente; relação terapêutica; técnicas específicas.
A Divisão 12 pretendia, integrar os trabalhos anteriores. As duas questões que orientaram essa nova força tarefa foram: (1) o que se sabe sobre a natureza dos participantes (terapeuta e cliente), da relação terapêutica e dos procedimentos no que diz respeito à eficácia da intervenção? (2) como as variáveis relacionadas aos participantes, à relação terapêutica e aos procedimentos trabalham a favor, contra e entre si na terapia?
Esse trabalho de revisão, publicado em 2006 no livro Principles of Therapeutic Change That Work (Castonguay & Beutler, 2006b), deu origem à formulação de princípios de mudança terapêutica, que “são mais gerais do que uma descrição de técnicas e mais específicos do que formulações teóricas”. Tais princípios supostamente poderiam ser aplicados em qualquer modalidade de psicoterapia, já que abarcam variáveis relacionadas ao terapeuta, cliente e relação terapêutica.
Assim, a APA validou o papel vital da pesquisa científica, a utilidade dos manuais de tratamento, a relevância das técnicas específicas, a importância dos fatores comuns, etc. Em vista disso, a APA desenvolveu o conceito de Prática Baseada em Evidências em Psicologia (PBEP), definido como: O processo individualizado de tomada de decisão clínica que ocorre por meio da integração da melhor evidência disponível com a perícia clínica no contexto das características, cultura e preferências do cliente (American Psychological Association, 2006).
O objetivo do (PBEP) é promover uma prática psicológica eficaz e melhorar a saúde pública, aplicando princípios empiricamente embasados de avaliação psicológica, formulação de caso, relacionamento terapêutico e intervenção (APA, 2005).
Os três componentes constituintes da PBEP são: evidências de pesquisa; Repertório do clínico e idiossincrasias do cliente. As evidências de pesquisa referem-se às evidências empíricas que demonstram quais procedimentos terapêuticos produzem resultados positivos e minimizam resultados negativos. Tendo em vista que o que constitui a melhor evidência depende do objetivo em questão.
APA (2006) referenda diferentes tipos de métodos (Melhor evidência disponível: meta análise de ECRs ou experimentos de caso único).
Repertório do clínico (perícia clínica): construído em sua formação acadêmica, supervisão, experiência clínica e estudo da literatura teórica e empírica. O clínico precisa apresentar competências em: avaliação diagnóstica; formulação de caso; identificação de padrões clinicamente relevantes; planejamento e implementação de intervenções; monitoramento do progresso; habilidades interpessoais; relação terapêutica; compreensão das diferenças individuais e culturais; comunicação com outros profissionais envolvidos; domínio teórico e, em especial, obtenção e aplicação das melhores evidências disponíveis para cada caso particular.
Características, cultura e preferências do cliente. A PBEP visa promover a participação do cliente na tomada de decisão sobre sua própria saúde e bem estar, por meio da identificação e respeito aos seus objetivos; valores; crenças e contexto sociocultural. A identificação das peculiaridades do cliente como um fator determinante para a escolha dos procedimentos envolvidos no processo terapêutico é central para a PBEP. Como exemplo, Wampold et al. (2007), afirmam que um terapeuta que deixa de analisar como as crenças religiosas do cliente que estão relacionadas à intervenção oferecida não está praticando PBEP, assim como um terapeuta que ignora as evidências de pesquisa.
Apesar de suas limitações, a PBEP está no centro das atenções do cenário internacional da Psicologia e constantes esforços têm sido feitos nessa direção por pesquisadores e profissionais com o intuito de preencher a lacuna entre ciência e prática ainda existente na Psicologia Clínica
Para saber mais:
American Psychiatric Association (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM 5. Arlington, VA: American Psychiatric Publishing
American Psychological Association. (2006). Evidence based practice in psychology: APA presidential task force on evidence based practice. American Psychologist, 61(4), 271 285.
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Barlow, D. H., Boswell, J. F., & Thompson Hollands, J. (2013). Eysenck, Strupp, and 50 years of psychotherapy research: a personal perspective. Psychotherapy, 50 (1), 77 87.
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Leonardi, J. L., & Meyer, S. B. (2015). Prática baseada em evidências em psicologia e a história da busca pelas provas empíricas da eficácia das psicoterapias. Psicologia: Ciência e Profissão, 35(4), 1139 1156.
Leonardi, J. L. (2017). Métodos de pesquisa para o estabelecimento da eficácia das psicoterapias. Interação em Psicologia, 21(3).
Luborsky, L., Singer, B. H., & Luborsky, L. (1975). Comparative studies of psychotherapies: is it true that “everyone has won and all must have prizes”? Archives of General Psychiatry, 32(8), 995 1008.
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